às vezes eu escuto você chorar baixo. sempre é madrugada e nós estamos sozinhos, ninguém mais pode ouvir. eu passo a mão pelo seu cabelo branco e digo que tá tudo certo. você para de chorar mas ainda respira pesado pra me mostrar que seu pânico ainda não foi aplacado.
eu sinto esse desespero baixinho no meu coração. começa pelos dedos que encostam em você e vem chegando até o centro, no fundo da garganta. esse é o meu eixo, depois do palato mole. tudo fica acumulado ali.
meus ouvidos doem muito muito muito e agora mesmo que você chore eu não conseguiria ouvir. mesmo que você peça minha ajuda, eu não poderia. existem amarras na cama e seu corpo some e sua tristeza vira minha e eu sufoco.
e eu choro bem baixo pra você não ouvir. você não ouviria, mesmo que estivéssemos sozinhos no meu quarto, porque ouvir é uma materialidade. o dia pode amanhecer agora e seria noite da mesma forma porque essa é a consequência do abandono; os dias são todos iguais às noites e as noites são todas iguais. nunca me senti tão só antes. posso passar a mão em outro corpo e dormir junto de outro alguém; chorar ou ouvir alguém chorando baixo; sentir o desespero - mas
alguém pode não entender. você entenderia. se acomodaria entre minhas pernas e ficaria quieto, me olhando. aqueles grandes olhos redondos e azuis, no final. é de você que eu preciso, mesmo que você me impeça de te amar.
eu queria chorar pra você que desde que você foi embora eu venho ganhando algumas barreiras e perdendo muitas. eu consigo andar só e dormir melhor, mas eu preferia andar junto e dormir mal. preferia perder e reprovar por falta a me formar, se pudesse escolher. preferia cuidar de você. preferia sentir seu cheiro e seu cuidado. eu abriria mão dessa vida, tenho alguma certeza nisso. a perda é surreal e soa muito com insanidade.
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