Sou eu ao teus pés derramado.
Falo a mim mesma no espelho, com os olhos abertos, atentos para não perder um movimento. Não me movo. Espero para visualizar todas as que vieram até então, mas é imaterial. Não há luz que possa ser refletida, nem mesma a da razão: então porque espero? A resposta alta, momento de autonomia da própria imagem, que não é nada, só reflexo, e só cabe a mim mesma movimentar os lábios e mãos até alcançar a resposta. E eu não consigo, dentro da imaterialidade ainda existe o peso, a gravidade, tudo que se apoia nos ombros e oprime e arrasta meu rosto no chão, imobiliza e cala. São tantas que vieram e se formaram até aqui e permanecem em silêncio mas pulsam, pulsam. Sim, sou eu, ao meus pés, derramada. Pouco resta do que fui. 
Cabe a mim se serei boa ou ruim.





Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui
P. Leminski

o dia que eu descobri, em mim, maré alta

Houve um momento e nesse momento houve uma colisão, suave e silenciosa, feita de pontas, como uma estrela bem no meio do arco, no lugar da flecha, pronta para ser lançada. Eu me lembro bem da sensação da ponta do dedo passando pelo meu rosto e eu já sabia, e você também já sabia, mas era um acordo silencioso e os dois viveriam quietos por mais tempo em seguida para que não fosse real. E esse tempo doeu, uma faca de brilho perigoso, afiadíssima que se entranhava entre as costelas, rasgando o tecido, mas fluida como água e triste como também. Mas não importava, porque aconteceu a colisão e agora a flecha havia sido lançada e algumas coisas não retornam. Eu olhei pra você, deitada no chão, de uma distância segura. Olhei para o céu e ele era azul e laranja, como um presságio. Um presságio de mudança, porque a cada segundo refletia-se na telha em uma cor diferente a depender do passar das nuvens e do ângulo que eu lançava o olhar. Tentei te mostrar, apontava pra longe de mim. Desviava da flecha como se não soubesse do seu movimento, ingênua ou fingindo ingenuidade. Mas você olhou pra mim e parou, como quem segura o tempo com as mãos, com os dedos, com os cílios.
Todas as palavras ficaram suspensas. Todos os sons ficaram mudos.
O fluxo de todo o material ao nosso redor não era mais fluxo, era estático.
Todas as células calaram-se e quase morreram. 
Foi apenas um segundo. Mil milésimos de segundo. Tudo que dividia resolveu se multiplicar, mas no retorno, suspendeu.
E então foi determinado, não por mim, nem por você, isentando-nos de responsabilidade, e mesmo assim sendo toda nossa. Antes do que pudesse escolher e antes que fosse uma opção; antes de haver uma ação deliberada, antes da colisão e do arco e da estrela de pontas me alcançando na nuca, bem no centro do que liga meus pensamentos aos meus dedos. Uma sentença realizada por ninguém: isso é o que seria. 


Minha memória é péssima.
e mesmo assim, eu guardei o seu cheiro. 
Se as minhas palavras pudessem se transmutar no momento que saltassem da boca, elas o fariam. Não que eu queria tirar de mim a culpa de um expresso mal feito, ou preposição mal elaborada, mas o boicote acontece e rapidamente o questionamento vira adaga; o amor vira barro; o ouro se transmuta em qualquer composto orgânico sem valor. Talvez seja, também, o meu tom de voz que dá vazão pra que isso ocorra; talvez seja o movimento dos meus lábios que não abrem o suficiente; talvez sejam as cordas vocais demasiadamente aproximadas e elas se batem e batem como se criassem uma nova palavra que não foi imaginada, não era a querida, mas foi dita como se fosse a original, pois é a primeira vez que é proferida para ouvido do outro. Então assumo essa posição de silêncio e calada eu devo seguir, sem debater minhas dúvidas sobre as normas e anormalidades cotidianas como se tudo fosse muito o que se é e nunca tivesse sido diferente. Então assumo a posição da apatia e do cansaço que logo chega por não aguentar não falar mais nada, não poder cantar mais nada, nem pensar mais nada que esteja completamente errado. Não por ser errado mas por não ser congruente com o que havia sido pensado até que o pensamento não faça mais sentido e pare. pare.
a culpa é minha, só pode ser minha, e eu me boicoto porque eu penso e porque eu falo. 

 é agora viu é agora você vai ter que escolher e dar esse passo gigantesco que é o futuro se afunilando e abrindo ao mesmo tempo mas o mal e...