o dia que eu descobri, em mim, maré alta

Houve um momento e nesse momento houve uma colisão, suave e silenciosa, feita de pontas, como uma estrela bem no meio do arco, no lugar da flecha, pronta para ser lançada. Eu me lembro bem da sensação da ponta do dedo passando pelo meu rosto e eu já sabia, e você também já sabia, mas era um acordo silencioso e os dois viveriam quietos por mais tempo em seguida para que não fosse real. E esse tempo doeu, uma faca de brilho perigoso, afiadíssima que se entranhava entre as costelas, rasgando o tecido, mas fluida como água e triste como também. Mas não importava, porque aconteceu a colisão e agora a flecha havia sido lançada e algumas coisas não retornam. Eu olhei pra você, deitada no chão, de uma distância segura. Olhei para o céu e ele era azul e laranja, como um presságio. Um presságio de mudança, porque a cada segundo refletia-se na telha em uma cor diferente a depender do passar das nuvens e do ângulo que eu lançava o olhar. Tentei te mostrar, apontava pra longe de mim. Desviava da flecha como se não soubesse do seu movimento, ingênua ou fingindo ingenuidade. Mas você olhou pra mim e parou, como quem segura o tempo com as mãos, com os dedos, com os cílios.
Todas as palavras ficaram suspensas. Todos os sons ficaram mudos.
O fluxo de todo o material ao nosso redor não era mais fluxo, era estático.
Todas as células calaram-se e quase morreram. 
Foi apenas um segundo. Mil milésimos de segundo. Tudo que dividia resolveu se multiplicar, mas no retorno, suspendeu.
E então foi determinado, não por mim, nem por você, isentando-nos de responsabilidade, e mesmo assim sendo toda nossa. Antes do que pudesse escolher e antes que fosse uma opção; antes de haver uma ação deliberada, antes da colisão e do arco e da estrela de pontas me alcançando na nuca, bem no centro do que liga meus pensamentos aos meus dedos. Uma sentença realizada por ninguém: isso é o que seria. 


Minha memória é péssima.
e mesmo assim, eu guardei o seu cheiro. 

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