A luz do banheiro ficou acesa, ainda bem. Era a única fonte que poderia ser controlada e, em descontrole, ficou acesa. Coloquei tudo dentro de caixas e bolsas. Tudo o que meu olhar alcançou foi arrastado.

Algumas coisas invisíveis tive que deixar para trás, não deu tempo. A prateleira com os livros enquanto ela dorme entre as plantas, pra trás. Não deu tempo de escolher um lugar pra colocar a caixa de areia da gata e não deu tempo de medir meu armário. O armário ficou mesmo sendo visto.

Ela tem medo o tempo todo agora porque a casa é nova então vive escondida quando o sol brilha. Antes, deitava na grama e caçava borboletas para mim. Dedicada. Hoje dedica-se somente ao seu próprio medo. Seria capaz de conhecer outro lugar? Um menor ainda, com menos caixas, mas comigo. Eu valho a pena? 

Ela também deixará várias coisas invisíveis para trás, presas no forro da cama que eu já não durmo. Ela dormia lá porque compartilhava o espaço comigo. Agora eu compartilho o espaço com ele. Talvez ela o aceite.

A manutenção de uma relação que não existe comunicação é complexa. Eu falo palavras imensas e curtas, porém nada faz muito sentido. Ela não fala essa língua. Eu não falo a linguagem dela. Mesmo assim, costumávamos nos dedicar.

Emanuel me falou que questiono até exaustão. Não é intencional, não existe mais proteção, as palavras não oferecem limites pro que me atravessa. Perder e mudar me dói, eu não gosto dessa dor e sem o cercado tudo é zona de desconforto. 

Viver é tudo isso e dói em todos os lugares, exceto quando cultivo as flores. Nós não nos falamos.

 acho que deixei de existir faz bastante tempo. agora tomei consciência e a dor de volta à vida é intragável. 

viver são todas as coisas. entre todas elas, existe esse aperto. sempre foi assim, mas numa outra magnitude com o passar da idade.

será que eu vivo entorpecida? eu me coloco sempre abaixo, como com medo. 

Um gato debaixo do fogão ou dentro do forro da cama.

Como uma tecnologia muito avançada, eu silenciei. Esqueci que para ter novas palavras preciso gastar todas as antigas, ou paro. Preciso ler ...