Como uma tecnologia muito avançada, eu silenciei. Esqueci que para ter novas palavras preciso gastar todas as antigas, ou paro. Preciso ler novamente o dicionário como fazia 20 anos atrás, empolgada com a capa verde falsa feita por proteção, preservar o externo mesmo que todas as páginas amarelassem por dentro. Apesar de ser um reflexo do que é inteligente e artificial, silenciado não vou para lugar nenhum, porque não são números e fluxos que abrigo. Apesar de tentar mimetizar a automatização, não sou um dróide e nem preciso Voight-Kampff para testagem: me veja tomando um copo de cachaça e o sangue extravasa para ser ingerido de novo. A pele rasga com muita facilidade. Preciso me olhar no espelho e ter outras palavras na ponta da língua, mudar tudo e mais uma vez. Tudo que outra hora era sem precisão, suspenso no ar a espera de uma deliberação, foi finalmente deliberado: agora eu a tenho de volta e ela me ama, ama sua casa, ama sua cama e ama a ele também. A comunicação não verbal e feita exclusivamente por atos de dedicação tem uma nova roupagem, porque eu não enlouqueci no caminho. Eu consegui permanecer, no limiar da autodestruição e no isolamento, como um gato prestes a morrer, escondendo seu próprio cadáver do predador, como se houvesse esperança de o tempo lhe retornar a vida. Mas eu não sou gato, como não sou dróide, e voltei. Mas preciso ir embora de novo. Cronicamente, ele irá e irá e irá, até deixar de ser quem é pra ser outra palavra em outro passo. 

 é agora viu é agora você vai ter que escolher e dar esse passo gigantesco que é o futuro se afunilando e abrindo ao mesmo tempo mas o mal estar nunca passa e nem se preocupe não passará ele oscilará e irá e irá e irá cronicamente como todas suas escolhas em um fino e estreito corredor de infinitos metros de altura e não adianta! não adianta olhar pra cima porque não é nada seu olho não é nada seu corpo não é nada seu cérebro não processa a luz não atravessa é você limitada pequena minuscula apertada sem cor sem graça sem nada dando esse grande e enome passo que mudará todos os países de lugar e suas contas serão pagas e você não deverá temer viver sem nada sem teto sem comida porque você fará mas não o faz nunca fará mas dará o passo você irá até lá só pra saber que não importa, nunca importou, não importará para os subsequentes.

A luz do banheiro ficou acesa, ainda bem. Era a única fonte que poderia ser controlada e, em descontrole, ficou acesa. Coloquei tudo dentro de caixas e bolsas. Tudo o que meu olhar alcançou foi arrastado.

Algumas coisas invisíveis tive que deixar para trás, não deu tempo. A prateleira com os livros enquanto ela dorme entre as plantas, pra trás. Não deu tempo de escolher um lugar pra colocar a caixa de areia da gata e não deu tempo de medir meu armário. O armário ficou mesmo sendo visto.

Ela tem medo o tempo todo agora porque a casa é nova então vive escondida quando o sol brilha. Antes, deitava na grama e caçava borboletas para mim. Dedicada. Hoje dedica-se somente ao seu próprio medo. Seria capaz de conhecer outro lugar? Um menor ainda, com menos caixas, mas comigo. Eu valho a pena? 

Ela também deixará várias coisas invisíveis para trás, presas no forro da cama que eu já não durmo. Ela dormia lá porque compartilhava o espaço comigo. Agora eu compartilho o espaço com ele. Talvez ela o aceite.

A manutenção de uma relação que não existe comunicação é complexa. Eu falo palavras imensas e curtas, porém nada faz muito sentido. Ela não fala essa língua. Eu não falo a linguagem dela. Mesmo assim, costumávamos nos dedicar.

Emanuel me falou que questiono até exaustão. Não é intencional, não existe mais proteção, as palavras não oferecem limites pro que me atravessa. Perder e mudar me dói, eu não gosto dessa dor e sem o cercado tudo é zona de desconforto. 

Viver é tudo isso e dói em todos os lugares, exceto quando cultivo as flores. Nós não nos falamos.

 acho que deixei de existir faz bastante tempo. agora tomei consciência e a dor de volta à vida é intragável. 

viver são todas as coisas. entre todas elas, existe esse aperto. sempre foi assim, mas numa outra magnitude com o passar da idade.

será que eu vivo entorpecida? eu me coloco sempre abaixo, como com medo. 

Um gato debaixo do fogão ou dentro do forro da cama.

Hoje eu pensei em me matar de verdade. É a segunda vez esse mês.

Eu não gosto de sentir vontade de sentir vontade de pular do segundo andar.

mas eu senti

o vento nas panturrilhas carinhosamente subindo 

indo após as coxas, na barriga, no pescoço como um sufocar

de encontro com toda minha confusão no alto no topo do meio no extremo norte da minha cabeça

e senti vontade de que meu crânio rachasse ao meio

e eu sumisse em meio ao frenesi

de que tudo seria possível de deixar de existir se eu não existisse mais

foi o que eu quis

eu quis morrer


hoje é o mesmo dia desse dia treze dias depois e eu quis me matar todos os dias subsequentes.

Como uma tecnologia muito avançada, eu silenciei. Esqueci que para ter novas palavras preciso gastar todas as antigas, ou paro. Preciso ler ...