Bati uma foto muito estranha. Bati várias dela, na verdade. Todas com um olhar meio opaco, uma boca meio frouxa, no que parecia ser um ensaio de sorriso. Eu vinha fotografando bastante, numa tentativa inútil de descobrir mais sobre mim. Não descobri nada de novo, na verdade. Só me lembrei do que eu já fui. Me lembrei de como eu era contente antes, e de como meu sorriso era um sorriso digno, de como meu cabelo era um cabelo digno, e por aí vai. Tudo tão indigno de foto agora. Digno de lixeira, só. E foi isso que aconteceu, deletei tudo, passei tudo pra lixeira do computador, e até mesmo ela acabou indignada, gritando: "êpa! Não vai esvaziar?". Atendendo aos apelos, esvaziei. Deixei tudo limpo, tão vazio quanto o meu olhar naquela foto estranha. E horrorosa, diga-se de passagem.
Até parece novidade: uma bomba cheia de papel colorido explodindo na minha cabeça. É, papel colorido. Mas não o festivo, aquele que a gente joga nas pessoas no Carnaval ou no aniversário; não, são daqueles papeizinhos que a gente usa pra determinar a gravidade de uma situação. Sabe? Um lembrete em vermelho, e você não pode esquecer. Um em amarelo, e você pode colocá-lo em segundo plano, deixar pra mais tarde. Mas não pode deixar pra mais tarde quando uma porção deles resolve explodir e grudar na sua pele, cabelo, todo o corpo. Não dá pra se livrar quando todos os seus problemas exigem uma resolução imediata, e até os em verde resolvem se juntar no motim contra a dona. Reivindicando melhores condições de soluções, mais espaço, mais atenção, mais tudo! E tudo o que você pode oferecer é um aumento de 0.1% nos palavrões.
Mas até parece que é novidade, todas essas más condições.
Tá faltando solução nesse mandato aqui.
Na foto eu tô sorrindo! Aproveitei bem rápido para que o canto da boca não escorregasse. Momento raro, câmera poderosa e lá estava eu, aproveitando uma oportunidade única nesses tempos de escassez. Felicidade não bateu as caras lá em casa. Saiu outro dia, dizendo que ia na feira comprar manteiga, leite e pão. Cadê que voltou? Parece o saci, que disse que ia num pé e voltava no outro. Nunca mais voltou. Ainda tive esperança, esperei na sala de jantar. Pensei até que tivesse esquecido as chaves, e deixei a janela aberta - se quisesse pular, se fosse o caso. Mas não veio nesses tempos, e desconfio que vá demorar no exterior. O interior tá um deserto sem fim. Aí eu fiquei em casa pra me virar, sem manteiga, leite e pão. E sem felicidade.
Mas com a câmera, eu fiquei.
Esse papo de que felicidade é rara por que tudo é que bom dura pouco tá furado demais, pra mim. Tô quase achando minha tristeza bonita, só pra arranjar uma companhia e fingir que ela é agradável. Não dá pra ficar esperando pela felicidade, ou buscar por ela em cada pequeno momento. É quase como uma aceitação, depois de uma luta pra tentar evitar, de que aquele cara chato na fila do banco vai ser sua única companhia das nove da manhã até o meio dia. Depois de sacar o dinheiro, você pode ir pra casa. Fica a vontade pra não pegar nem o número dele. Mas aproveita o papo chato por que é o único que você tem. Não posso esperar ninguém mais legal na fila do banco, tenho hora marcada pra tudo. E agora vai rolar aqueles comentários incrivelmente originais: "Nossa, quanto pessimismo, você é muito nova pra se sentir assim. Ânimo, garota!". Uma pena, mas meu ânimo "já tá pra lá de Marraqueche".
Eu me peguei parada, olhando pro céu, com a boca aberta. Contando estrelas, na verdade. Fazia tempo que eu não contava as estrelas, por dois grandes motivos: o primeiro, era que minha mãe sempre me dizia que "o número de estrelas que você conta é igual ao número de anos que você viverá", e eu morria de medo dessa pequena praga-de-mãe; segundo, porque meu pescoço sempre ficava doído. O chão era sujo demais para me dedicar a esse passatempo. Mas confesso que sempre o fazia quando algo estava errado demais para contar para alguém. Eu contava as estrelas para contar a elas sobre mim. "Olá, você é a primeira. Como anda sua vida? Parada? Já sei, sua vida anda brilhosa. É, a minha está terrível. Olá segunda, irei te chamar de Cleide. Combina com sua pele." Uma merda. E eu me peguei, naquela noite, depois daquele dia, onde o sol raiou - um dia qualquer - olhando para o céu. Tentando contar coisas para pontos de luz que conseguem ver toda a minha peça teatral chamada "Vida - a saga de um humano comumente idiota" do camarote vip. De graça, ainda mais. Talvez rindo de mim, e sempre me mostrando do melhor modo possível, o quanto elas eram tão melhores do que eu. Bonitas e inalcansáveis, não-machucáveis. Perfeitas. Dignas de uma premiação Nobel de qualquer coisa nobre que possa existir. Melhor, dignas da apreciação de qualquer um pelo seu caráter, porque sua perfeição atravessava as barreiras físicas: elas eram eternamente pacientes com qualquer um que precisasse. Bastava ter um tempo para perder seu tempo e se perder em conversas perdidas na escuridão.
Passou. Foi como aquela tempestade de relâmpagos da quinta-feira, se lembra? Durou quase uma noite inteira, assustou meia cidade e deu até no jornal. Mas passou. Não deixou rastros de destruição, não derramou lágrimas de ninguém, nada. Foi uma limpeza encomendada pelos deuses - um tanto barulhenta, mas bem feita. Sua passagem foi desse jeito, foi uma limpeza da minha alma, encomendada pelo destino.
Gosto de quando você sorri para mim daquele jeito meio bobão. Também gosto de quando você me fala das coisas inúteis que você ouviu falar em um site de curiosidades. Gosto de quase tudo o que você faz, mas ninguém sabe, ninguém pode saber - é um segredo. Faço parte do clube das pessoas que amam quietas, em silêncio, tenho até carteirinha de sócia VIP. Confesso que não foi algo inacreditável, que em uma hora você está bem e na outra você está totalmente apaixonada - foi bem calmo, na verdade, crescendo devagarzinho. Eu não tentei impedi-lo. E agora não é um sentimento tão importante, nem bonito, mas tá começando a me incomodar. Eu poderia demorar horas e horas para descrever como eu me sinto (naquele estado neutro do começo de paixonite), mas acho que Tati Bernardi já comentou sobre: "isso fode minha cabeça."
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